quarta-feira, 21 de abril de 2010







O bom e o mau

Vazio

Ele está zonzo. Não tem consciência exatamente do que havia acontecido. Olha para a poltrona ao lado e vê, com assombro, a mulher morta. Não atesta agora o nome dela. Lembra ter embarcado num pequeno jato de asas brancas com letras em azul. O voo era importante e deveria ser rápido. Só não sabia o motivo.

Rostos

Repassa os rostos familiares que decolaram juntos na aeronave. Tudo ao seu redor agora parece ter saído de um filme sobre destruição. Porém, cheiro de sangue e óleo denota ser realidade. Tenta mover o braço esquerdo a fim de se soltar do cinto de segurança. Este lhe aperta o peito, fazendo sentir dificuldades na respiração. A mulher o mira com seus olhos vazios, enquanto ele se movimenta de maneira intensa para sair dali. O pulso direito dói. Sente a perna direita pesar. A calça está manchada de sangue. Escorrega; grita de dor. Leva a mão ao ombro esquerdo. Está com a clavícula deslocada. Deita-se por uns instantes no chão emborrachado. Respira fundo.

Os mortos

Faz um rasgo em sua camisa, tirando uma tira do pano, com a qual improvisa um torniquete e amarra-o logo acima do joelho. Com um movimento brusco, recoloca o osso do ombro no lugar. Não sabe como, nem onde aprendera a fazer isso. Percorre com os olhos o interior do aparelho. Constata a presença de quatro corpos, contando com o da mulher ao seu lado. A maioria com ossos à mostra. Três homens, sendo dois tripulantes da aeronave, identificados pelos lugares que ocupavam o manche. Aproxima-se dos cadáveres, postados nas poltronas mais a frente. Um a um, certifica-se de estarem realmente mortos. Todos usam jaquetas pretas, inclusive ele.

Lembranças

Olha, através do vidro direito pequenas labaredas na asa. Assusta-se. O jatinho poderia explodir a qualquer momento. Manquitolando, vai até a porta parcialmente destruída e se coloca para o lado de fora. O cheiro de óleo ainda é forte, mas agora se mistura ao de mato molhado. Não sabe quantos metros percorrera de maneira atabalhoada, até achar a distância segura. Acomoda-se em um tufo de capim elevado por um módico barranco e fica a olhar para os destroços. Onde estava? O que acontecera? Quem eram aquelas pessoas dentro dos destroços? A dor na perna lhe faz cerrar os dentes. Busca, em sua reflexão, informações para todas as perguntas, mas não consegue sequer lembrar o próprio nome.

A primeira noite.

O torniquete havia estancado o sangramento da perna. Devia ter adormecido ou perdido os sentidos, pois quando se deu conta, já estava escurecendo. Olhou com assombro a selva que rodeava a clareira aberta pelo impacto do avião. Mosquitos o picavam no pescoço e moscas faziam rasantes sobre o sangue seco da perna, fartando-se no banquete à mostra. As labaredas na asa extinguiram-se e naquele momento, achou melhor voltar para dentro do aparelho. Apoiando-se num pedaço de galho arranjado, perto do capinzal, vai em direção aos destroços. O cheiro de sangue estava mais forte dentro da aeronave. Deita-se no chão e se encolhe numa posição fetal. Assim adormece.

A espera

Acorda de sobressalto. O sol já se fazia presente iluminando o seu rosto através da porta aberta. Movimenta-se com cuidado. A perna está bastante inchada e, do joelho para baixo, predomina uma cor azulada. O pulso direito parecia estar quebrado Moscas haviam invadido o interior do aparelho em busca de carniça. O zumbido de asas batendo, provocado pelos insetos, lhe põe os nervos a flor da pele. Vai até o rádio do painel de controle, a fim de verificar a funcionalidade do mesmo. Estava totalmente danificado. Seria impossível alguma comunicação através dele. Volta para o corredor que separa as poltronas. Não sabe o que fazer. Esperar? Era o que lhe restava. Os olhos da mulher fitam-lhe, ainda, por entre um rastro de sangue escorrido pela fronte.

Sobrevida.

Dera-se conta de existir, em algum lugar do pequeno jato, o compartimento de primeiros-socorros e sobrevivência. Todas as aeronaves comerciais devem possuir tal disposição. Arrasta-se até o fundo do corredor, onde pedaços de aço retorcidos se misturam aos moldes de madeira saltados dos cubículos. Entre essas tralhas, encontra uma em especial. A maleta de cor branca, provavelmente contendo o necessário para amenizar a dor e aplacar a infecção, visível em sua perna e no pulso. Pequenos pacotes plásticos, adjuntos à maleta, contendo chocolates e garrafas de água mineral, lhe fizeram liberar a contração no estômago. Abre o invólucro de um dos pacotes e se satisfaz com duas barras de chocolate. A água desce por sua garganta ardida. Percebe dois dentes quebrados ao fundo da boca e a gengiva ferida. Sai do avião carregando a maleta e vai se sentar perto da asa direita, onde fez uso dos apetrechos medicinais. Para seu regozijo, uma caixa com antibióticos se destacou entre as gazes, esparadrapos e iodo.

O funeral.

Refeito da fome, da sede e medicado, começa a inspeção pelos destroços, na procura de qualquer ferramenta útil. Abaixo, do que seria o compartimento de bagagens, pelo lado externo do aparelho, encontra sacos de dormir, feitos por algum material análogo a espuma sintética revestida por nylon. Retira-os e os deposita perto do avião. Eram seis ao todo. A ideia de remover os corpos de dentro do aparelho lhe causa repugnância, mas, necessária. Os sacos eram perfeitos para guardar os restos mortais daquelas pessoas, conhecidas e desconhecidas, paradoxalmente, em sua mente. Olha a clareira aberta no meio da selva. A mata, fechada, parece não dar espaço nem para as moscas passarem por ela, que dirá uma pessoa. Começa, então, a retirar os corpos, um a um, acondicionando-os dentro dos sacos de dormir, puxando o zíper até o último dente. Coloca-os perto do capinzal e derrama óleo em volta, fazendo um círculo. Talvez isso impedisse aproximação de algum animal. Percebera, contudo, que devido ao material sintético dos sacos, o odor de putrefação diminuíra bastante. Fica de pé, olhando para aqueles esquifes improvisados. Não lembra se sabe rezar. Talvez saiba. Mas, como lamentar por alguém ao qual não se pode dividir lembranças?

A segunda noite

Fizera um sinal de SOS, com gravetos e pedaços da lataria do aparelho e, ainda, levantara uma bandeira de mais ou menos cinco metros de altura com um tronco fino, onde pendurou na ponta, um pedaço de pano alaranjado, encontrado na caixa de ferramentas. A noite começa a cair. Sons estranhos vindos do interior da mata lhe dizem para se recolher. Ingressa. Fecha a porta, se acomoda no corredor dentro do saco de dormir. Come mais uma barra de chocolate e se ajeita em uma posição confortável. Pensamentos estranhos lhe ocorrem antes de pegar no sono. Acorda num repente, coração dispara. Escuta um som vindo do capinzal. Parecem passos pisando sobre gravetos, que estalam ao se partirem. Corre a mão pelo chão do corredor. Alcança a lanterna; aciona o botão. Ela falha. Os passos parecem estar mais próximos. Ele bate no fundo da lanterna com a palma da mão. Os passos cessam. Respirações intensas se fazem ouvir dentro e fora da aeronave. Finalmente luz. Direciona-a para as janelas. Os passos agora disparam em direção à mata, arrastando algo junto com eles.

Desaparecido

O sono não voltou mais. Ele levanta assim que vê o primeiro raio de sol. Apodera-se de uma chave inglesa, antes de sair pela porta. Olha desconfiado. Eleva a ferramenta acima da cabeça. A mata está silenciosa. Não sabe onde escutara. Isso não era bom sinal. Avança por mais alguns metros, circulando sobre os calcanhares a fim de não ser pego de surpresa pelo causador dos passos noturnos. Talvez, um animal rondando pela clareira na madrugada. A princípio estava tudo em ordem, a não ser por um detalhe: sente um arrepio em sua espinha e tremor nas mãos. Um dos sacos de dormir sumiu. Junto com ele, o corpo da mulher. Ele se aproxima do outros cadáveres e compreende que o saco fora arrastado para dento da mata. O sinal é bastante visível. Um rastro de sangue escuro indicava o caminho seguido pelo visitante.

Medo

Volta, andando de costas, para dentro do avião. Suas idéias tornam-se abstratas. A imaginação começa a trabalhar contra ele. Era preciso se acalmar, controlar os pensamentos. Um animal! Sim! Um animal, provavelmente um carnívoro grande o bastante para arrastar o cadáver de um adulto. A fronte deixa escorrer um fio gelado de suor. O pulso dói. Não pretende sair mais durante aquele dia. O calor, as moscas, a dor, o medo, tudo lhe traz desconfiança incontida. A respiração está acelerada.


A terceira noite

Qualquer movimento ou som, trazia-o de seu sono desconfortável. Puxa a garrafa de água para perto de si; engole mais uma pílula de antibiótico. A boca inteira lhe arde. Recosta a cabeça novamente no almofadado do colchonete. Fecha os olhos em busca de lembranças. Nada. Aos poucos sede ao cansaço e, entre dores, adormece. Repentinamente, passos movimentam o capinzal. O despertar é automático. Madrugada ainda. Põe-se de pé, tendo a mão, a lanterna e a chave inglesa. Fica ao fundo do corredor, acuado, mas em posição de ataque. Os passos se aproximam da aeronave, ele pode sentir. O silêncio impera por alguns minutos. Ouve os gravetos, perto do capinzal, estalarem e, algo sendo arrastado novamente. Fica na posição de ataque até o amanhecer.

O socorro.

Conta, ainda, com quinze barras de chocolate e cinco garrafas médias de água. Teria pelo menos mais uma semana para aguardar ajuda. Empurra a porta com o cotovelo, empunhando a ferramenta na mesma mão. O céu está um pouco nublado. Paira no ar uma espécie de cerração, quase uma garoa. Ele evita olhar para local onde estavam os corpos. Fica por alguns instantes a rodear os destroços metálicos. As letras azuis da asa eram visíveis, mas não significavam nada para ele. Num instante rápido meneia a cabeça e estica o olhar para o capinzal. Outro corpo fora levado. Cerra os punhos esquecendo a dor no pulso direito. Levanta os olhos aos céus e pergunta: “Meu Deus, o que é tudo isso”? Aperta os olhos e vê uma aeronave sobrevoando entre a névoa. Primeiro não tem certeza, mas ao escutar o ronco do motor, corre até o tronco onde está pendurado o pano alaranjado e começa a berrar. Cuspia sangue a cada berro. Parecia ter espinhos em sua garganta. “Socorro! Estou aqui! Me tirem deste inferno”!.

A arma.

Chora. Não fora visto pelos ocupantes do avião de resgate. Teria de esperar mais. Não sabia definir o que estava sentindo. Se era aborrecimento por ter perdido a oportunidade de sair dali ou esperança, afinal, estavam a lhe procurar. Talvez mais um dia apenas. Precisava, no entanto, se preparar para esta noite. Não seria jantar de nenhum animal esfomeado. Remexe na caixa de ferramentas e, para espanto seu, encontra um sinalizador. Espanto, não por encontrar ali tal artefato, mas por não ter lembrado do óbvio. A noite vem. A escuridão é total.

Olhos na noite

Arrumara um espaço no fundo do corredor e ali estendeu sua acomodação improvisada. Sente que aos poucos o raciocínio começa a voltar. Já consegue concatenar juízos. “Amanhã usarei o sinalizador para ser visto.” Com um apertar de lábios, algo lhe vem à mente. As identificações. Não olhara os documentos. Todos deveriam estar com suas identificações. Num primeiro movimento começa a apalpar as próprias roupas, em busca de algum papel que dissesse quem era. Procura em todos os bolsos em vão. Deve ter caído. Amanhã investigaria nos corpos. “Se restasse algum”, pensa com uma ironia nervosa. Mais uma barra de chocolate, mais um gole de água e adormece. Pancadas na porta o despertam. Havia arrumado-a pela manhã. O que quer que fosse não conseguiria entrar tão facilmente. Por instinto segura o sinalizador como uma arma. A porta sede um pouco e ele consegue ver o brilho de um olhar através da fresta. Aponta o sinalizador na direção certa. “Eu estou armado, seu desgraçado! Pode vir”!. Aguça o pensamento. Se usasse o sinalizador não teria uma nova chance para garantir seu resgate. Decide atirar. O dispositivo falha. Os olhos dentro da escuridão desaparecem. Escuta os passos rápidos arrastando provavelmente mais um corpo.


Identidade

Pela manhã, abre os olhos, assustado. Dormira ajoelhado e a perna voltara a inchar. Levanta-se com sofreguidão e vai em direção à porta. Está levemente deslocada. Verifica o sinalizador. Esquecera de puxar a trava de segurança. Ri consigo mesmo. Talvez esse esquecimento tenha lhe salvado a vida. Empurra a porta e sai lentamente. Tudo continua quieto. O céu está limpo e ele sente ser o dia do resgate. Caminha até o capinzal e verifica realmente estar faltando mais um corpo. Com movimentos vacilantes, puxa o zíper do saco de dormir e depara com um rosto arroxeado. O cheiro insuportável quase o faz vomitar. Enfia a mão por dentro do bolso da jaqueta preta e retira uma carteira de couro. Com os dedos trêmulos, abre-a e nota uma identificação: Sérgio Landi Bacaró - Piloto da Policia Federal.

A lista

Retalhos de lembranças parecem ir e vir em sua memória. Um policial federal. Seriam outros também policiais? Seria ele um policial? Fecha o zíper e com dificuldades arrasta o saco para perto dos destroços. Estaria pronto esta noite, caso o salvamento não chegasse. O pano alaranjado caíra do mastro feito com o tronco. Olha em volta e não consegue identificar a localização. Teria de improvisar algo mais tarde. “Malditos mosquitos! São bichos criados no inferno!” Adentra no aparelho em busca de uma garrafa com água. A porta, praticamente, desmonta ao ser movimentada. O suor lhe escorre pelo rosto. Sérgio Landi Bacaró... tenta lembrar. Vai até a caixa, onde estão as garrafas e solta um palavrão ao verificar uma aranha do tamanho de uma maçã a lhe saltar sobre o peito. Rola pelo chão e, com uma raiva incontida, esmaga o inseto com as mãos, fazendo sair um líquido viscoso. Chegara ao seu limite. Deitado, olha para o painel de controle da aeronave. Marcas de sangue. O rádio de comunicação quebrado e, uma prancheta contendo uma lista de nomes em papel azulado. “É claro! A lista de todos os passageiros do avião!” Limpa a mão na calça e em quatro movimentos apanha a lista caída sob o painel. Percorre os nomes com os olhos.

Antonio Velásquez - Policial,
Elisa Prestes - Policial,
Sérgio Torres Bacaró - Piloto.
Leandro Mesquita de Sousa - Co-piloto
Fernando Sales, vulgo “Fernandinho” - Prisioneiro da Penitenciária de Segurança Máxima de Manaus.
Motivo do voo: Transferência para o Rio de Janeiro para depoimento sigiloso.

O confronto

Imagens se formam em sua retina. Imagens de tiroteios, emboscadas, carros em perseguição. Deixa-se cair sobre o chão emborrachado. Estava faltando um corpo. Pensa melhor. Um corpo não, alguém muito vivo que escapara ao desastre. Só lhe restam dois nomes para escolher. Antonio Velásquez ou Fernando Sales. “O homem é bom ou mau por natureza?” Se fosse um prisioneiro de uma penitenciária qualquer, lembraria disso? Não sentia ser perigoso para a sociedade. Todavia, o nome Antonio Velásquez não lhe traz nenhuma recordação. Raciocina: Se for o policial quem está levando os corpos, porque não ficou no aparelho? A ideia lhe traz um alívio. Sou o policial Antonio Velásquez e Fernandinho está por aí, embrenhado nessa mata. Quer me assustar, ou pior; tirar minha vida. Lembra: policiais não andam armados em aviões. Espera pelo socorro que não vem. A noite chega antes. Na escuridão, ele está preparado mais uma vez. “Que venha o famigerado”! .Alta madrugada, o capinzal cede,os gravetos estalam ante os passos , vindos desta vez, vagarosos. Ele sente Estão mais próximos ao aparelho. Está ansioso. Quando adere movimentos no saco de dormir onde está o corpo do piloto, ele chuta a porta e apontando o sinalizador com a trava aberta, atira. Acerta em cheio o indivíduo que tomba com um grito seco.

Decepção

Olha em meio à escuridão, o corpo caído, ainda soltando faíscas pelo couro. “Desgraçado! Vá para o inferno”! Se aproxima e, com surpresa, vê um enorme animal; um felino mortalmente ferido sobre o saco de dormir. Volta-se e escuta mais passos a correr mata adentro. Acabara de matar uma onça negra. Dois dias depois viu os filhotes rondando o aparelho.

O resgate

Não tinha mais nada em mãos para se defender, a não ser a chave inglesa. Depois que matara a onça, não pressentia a certeza de nada. Talvez Fernandinho tenha conseguido fugir através da mata. O dia estava claro e ele se pôs a refazer a bandeira alaranjada., quando ouviu vozes vindo por entre o capinzal. Jaquetas pretas saindo de todos os lados com armas em punho. Ele se volta e esboça um sorriso quando exclama: “Graças a Deus”!

“Mãos na Cabeça! Deita! Deita”!. Ele não entende, até escutar as frases e, como num flash, a memória reaviva cenas passadas: Antonio Velásquez não embarcara. “Então, quem sou eu”?

Revisão: Elaine Lopes

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